Roupa Suja

05/10/24

Delphine Reist & Laurent Faulon

A exposição Roupa Suja surgiu de uma dupla residência artística de Delphine Reist e Laurent Faulon no verão de 2024. Parte de uma vontade dos artistas de reiterar um mergulho nas mutações urbanas e sociais que vivenciou Lisboa. Ambos artistas, com uma história de colaboração que remonta a 2001, fundaram com vários artistas o espaço cultural Tercenas de Marques no bairro de Santos, voltando agora a Lisboa, no comıtė, para dar continuidade às suas investigações sobre as paisagens transformadas pela globalização, pelo consumo e descarte de massa. Naquela primeira experiência lisboeta de um ano, Reist e Faulon produziram obras que capturavam os contrastes entre a cidade histórica, o desenvolvimento acelerado de novos centros comerciais e as paisagens industriais em desusos. Essas obras, que já antecipavam as profundas transformações que a cidade experimentaria, serviram como ponto de partida para a residência no comıtė. Em 2024, os artistas aprofundaram as suas pesquisas, sensíveis a observar objectos normalmente descartados, sejam artefactos, sejam lembranças.

A peça de Delphine Reist resulta de uma reflexão deambulante da experiência citadina local traduzida por uma materialidade também urbana. O objecto escolhido são vitrines antigas de roupa que são como janelas de acesso, tanto ao íntimo como ao tempo passado. Ao recorrer a velhas vitrines de roupa interior, sobretudo feminina, como objecto do seu trabalho, e ao aplicar a técnica do graffiti, Reist mostra a presença da roupa íntima através da sua negatividade (no sentido de negativo fotográfico). Num jogo de visibilidade e invisibilidade, ou melhor, de impressão de existência, a artista dá a ver as formas da roupa, as suas sombras e as suas nuances através daquilo que não é a roupa, daquilo que é o exterior da roupa. Assim, são enfatizadas questões de economia das vitrines, no sentido em que o mercado destes mostruários foi sendo lentamente substituído por novas configurações capitalistas; da fashion e sobre que roupa íntima se mostra nas montras; da justaposição temporal de todas estas modas que permanecem contemporâneas e, por último, questões sobre o íntimo e o público.

Precipitada por uma performance preliminar que culmina numa instalação, o trabalho 26 rua do Professor Peña de Laurent Faulon convida a uma reflexão sobre o lugar da casa e a sua (des)ocupação. Modelada de memória pelo artista, a casa de bonecas retrata o seu lar de infância. Instalada no escuro da cave, a peça urge numa perspectiva perturbadoramente familiar onde o íntimo e o inquieto se espelham. Nesse sítio, cruzam-se deslumbramentos e tormentos; arrastados tanto pelo encanto do detalhe e a decepção do desprovido. Os quartos abandonados — excepto pelas miradas cúmplices da audiência — reforçam a reflexão. Faulon convida não só as alterações da sua casa, do fosso criado pelo ultra-turismo progressivo. O mesmo flutua entre o quotidiano da convivência bairrista conquistada em anos de vida comum e o consumo acelerado de sensações urbanas em busca da ilusória autenticidade. Nessas corridas de estafetas, mesmo cheias, as casas permanecem desabitadas, num escoamento que alisa a fachada anciã, desencarna o encontro atual, embaça o porvir.

O título da exposição provém da expressão coloquial e internacional “lavar roupa suja em casa”. A mesma descreve o facto de resolver os assuntos no seio do grupo em causa, de forma discreta e sem testemunhas. Subitamente, os trabalhos apresentados no comıtė produzem o contrário, numa oscilação constante entre o opaco e o ostentoso, exibindo descaradamente a zanga íntima e a amargura censurada para o público. Invertendo o voyeurismo prepotente e inerente às residências artísticas habituais “no estrangeiro”, uma estratégia não-exotisante é proposta pelo casal, acostumado a partilhar toda a “roupa suja” profissional e doméstica que os implica desde há duas décadas.

Texto e curadoria: Sofia L.Borges Stéphane Blumer

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